1982
Brasil, Rio de Janeiro
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Colaborador
Leandro Cruz (2017)
Citado por: 1
A obra se inicia com uma definição dos motéis como uma "região moral" (a partir do conceito de Ezra Park), mas que são localizados, preferencialmente, em regiões periféricas. Apresentam-se as principais questões espaciais e sociais destes equipamentos, passando pela separação entre indivíduo e sociedade e pela necessária garantia do "anonimato relativo" (a partir de Gilberto Velho e Luis Antônio Machado) dos clientes. Mais adiante, tratam da relação entre casa e rua a partir dos conceitos de Roberto DaMatta, agora aplicada aos motéis, onde discutem como eles preenchem o local destinado ao sexo fora de casa, que não mais se daria em qualquer lugar e seria, portanto, discreto e seguro.
Os autores questionam a ideologia da "democratização" nos motéis e apontam para suas semelhanças arquitetônicas e de organização espacial com os hospitais. Entendem que há dois setores distintos dentro do programa arquitetônico do motel - um destinado aos hóspedes e outro ao serviço - que estão ligados e ao mesmo tempo separados pelo "dispositivo arquitetônico" do corredor de serviço, de modo a evitar ao máximo a interação entre clientes e empregados.
Semelhante ao que se deu com a pesquisa sobre a arquitetura Kitsch, Guimaraens e Cavalcanti dão uma abordagem arquitetônica e antropológica ao seu objeto de estudo. Entre as principais referências, destacam-se antropólogos e cientistas sociais - como Gilberto Velho, Roberto DaMatta, Gerog Simmel, Erving Goffman, Marshall Sahlins e Robert Ezra Park - e os filósofos Jean Baudrillard e Michel Foucault. Uma segunda edição do livro foi lançada em 2007, acrescida de uma nova Introdução e um uma entrevista entre Cavalcanti e um proprietário de uma rede de motéis.
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura de motéis cariocas: espaço e organização social. Rio de Janeiro: Espaço, 1982.
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura de motéis cariocas: espaço e organização social. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007
Dinah Guimaraens e Lauro Cavalcanti, 1982:
"Um dos principais objetivos deste trabalho seria o de tentar descobrir o lugar e papel que o simbólico assume em nossas edificações contemporâneas, - fato que torna, até certo ponto, o presente estudo continuação lógica de nosso livro anterior Arquitetura Kitsch Suburbana e Rural, que, centrado no exame de residências unifamiliares, continha a questão da relação entre função e símbolo nesses prédios como uma de suas principais indagações. Outra questão pertinente seria a de tentar estabelecer de que modo é socialmente construída a instituição do motel como ‘templo de amor' e, ainda, que modelo ‘romântico' estaria sendo, através dele, atualizado. [...]. Ainda um último objetivo, que de certa forma constitui-se em questão de fundo que perpassaria todo texto, seria o de indagar até que ponto possuiria o motel seu próprio plano, através do qual seria auto-explicável, e em que medida estaria ele referenciado a outros domínios da sociedade mais ampla." [p. 9-10]
"Elemento de grande importância em um motel é a fachada de seu prédio. Sendo um estabelecimento comercial que não veicula propaganda a nível de meio de comunicação de massa, seu maior ponto de contacto com possíveis clientes é mantido, em primeira instância, através de sua fachada. Teria esta, portanto, a função tanto de chamar atenção para o prédio em relação àqueles que passam pela estrada, como fornecer informações, tão precisas quanto possível, sobre os serviços oferecidos pelo estabelecimento. Seria, portanto, o motel edificação que deve sobressair na paisagem, colocando-se destarte em pólo oposto ao da corrente arquitetônica que defende um certo mimetismo dos edifícios, visando sua maior integração ao meio circundante.
Uma das principais operações, a nível de significação, que a fachada de um motel deve efetuar seria, a nosso ver, o de desfazer a ambiguidade sobre os usos a que se destinaria esse estabelecimento. [...]" [p. 63]
"Encontra-se o projeto desse estabelecimento praticamente dividido em dois setores: um destinado a hóspedes, compreendendo basicamente a garagem, o quarto, ante-sala e banheiro - e aquele de serviço - abrangendo gerência, almoxarifado, cozinha, vestiários, lavanderia, corredor de serviço etc. - que deve fornecer meios para o bom funcionamento do setor de hóspedes sem que haja, no entanto, nenhuma interferência de espaços entre os mesmos. O dispositivo arquitetônico que, ao mesmo tempo, realiza a ligação e estabelece fronteira de domínios é o corredor de serviço, no qual circulam os funcionários do estabelecimento - garçons, camareiras e arrumadeiras, principalmente sem entrar em contacto com os clientes sendo, dessa forma, mantida sua privacidade e anonimato [...]" [p. 70]
"Através de um exercício simples e, à primeira vista, jocoso, acreditamos poder haver chegado a algumas hipóteses relevantes. Em primeiro lugar, o motel e o hospital são duas instituições de nossa sociedade que se ocupam - cada uma a seu modo, evidentemente, - de tratar o corpo. Dessa maneira as semelhanças entre ambos apresentariam lógica e mesmo relação maior do que poderíamos, de início, supor. [...]
Ambas as instituições tratariam do corpo isolando-o, ou seja, através de uma individualização visando, tanto em um caso quanto noutro, uma não-contaminação, fato que aparece de forma mais evidente no hospital mas igualmente presente no motel, no qual é, até certo ponto, atualizada a noção de sexo como elemento impuro, como será analisado na conclusão deste trabalho. Esta não-contaminação regula, em ambos os casos, a relação mantida entre funcionários e clientes dos estabelecimentos. [...] Outro aspecto que traria alguma aproximação entre as duas instituições refere-se a seus aposentos especiais: U.T.I. e suites. Em ambos os casos os ocupantes desses espaços são encarados, de certo modo, como casos-limites. No hospital seriam os ‘mais doentes'; já no motel aqueles amantes ‘mais apaixonados', pois lá permaneceriam por maior período de tempo." [p. 74-76]
"A partir do que foi conceituado por Goffman (in Manicômios, Prisões e Conventos), poderíamos afirmar, inicialmente, que o motel constituiria, de certa forma, uma ‘instituição total' para seus funcionários, que lá permanecem todo o tempo de seu turno de serviço - e não para a clientela que, além de permanecer no local por curto período, não tem, como já vimos anteriormente, acesso a todas instalações do estabelecimento. [...]
Essa vigilância constante, exercida pela equipe de supervisão ao comportamento dos empregados do motel, pode ser detectada através de dois itens distintos. O primeiro deles gira em torno da existência de um ESPAÇO ARQUITETÔNICO NORMATIVO, presente no setor de serviço do motel, em comparação com um espaço arquitetônico lúdico, apresentado pelo setor destinado aos clientes desse estabelecimento. [...]
Um segundo item que exemplificaria a definição do motel como uma ‘instituição total' para seus funcionários seria o que se refere ao CONTROLE SEXUAL dos empregados desse tipo de estabelecimento. Esse domínio exercido sobre o comportamento sexual dos funcionários do backstage pôde ser detectado nos discursos de vários de nossos informantes. [...]" [p. 120-122]
Sergio Bessa, 1996:
"Como Nelson Rodrigues, Márcia X confronta os paradoxos da classe-média brasileira (e suas ambigüidades espirituais, sociais e sexuais) de maneira direta, anti-hipócrita; o dado novo vem do fato de que este papel de intelectual moralista tem tradicionalmente sido privilégio dos homens. Na cultura brasileira o papel da mulher tem sido contiuamente relegado à área do ‘poético': em linhas gerais, a mulher tem podido optar apenas entre ser ‘musa' ou artista frágil, ‘intuitiva'. Raramente acontece no discurso cultural brasileiro a oportunidade de se ouvir uma crítica feminina. Esta inversão dos valores no esquema sócio-cultural tradicional é de vital importância no trabalho de Márcia X. À maneira de Lauro Cavalcanti e Dinah Guimaraens cujo levantamento da arquitetura de motéis brasileiros (Arquitetura de Motéis Cariocas, Rio de Janeiro, Editora Espaço, 1982) no início dos anos 80 funcionou no sentido de relaxar e desmistificar a postura rígida e estéril da tradição arquitetônica (modernista) brasileira, o trabalho de Márcia X abraça a árdua tarefa de nos fazer lembrar que nem tudo é sublime (ou sublimável) no terreno das artes plásticas brasileiras." [p. 80-81]
Dinah Guimaraens, 2007:
"IHU On-Line - Para a senhora, qual a importância da reedição de ‘Arquitetura kitsch suburbana e real' e de ‘Arquitetura de motéis cariocas - espaço e organização social' hoje?
Dinah Guimaraens - A importância da reedição destes livros, mais especificadamente o 'Arquitetura de motéis', é tornar possível uma reavaliação dos rumos tomados quanto ao comportamento sexual da sociedade patriarcal brasileira em cerca de 20 anos de sua primeira edição. Parece-me que existem, ainda hoje, poucos estudos aprofundados sobre a sexualidade em nosso país, o que torna este campo de estudo desafiante para o cientista social. A questão fundamental que norteou tal pesquisa conjunta - realizada em parceria com meu colega pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional-UFRJ Lauro Cavalcanti, tendo como ponto de partida o inspirador curso ministrado pelo Professor Gilberto Velho sobre Antropologia Urbana - referiu-se à dupla moralidade que então parecia preponderar no casamento monogâmico dos grandes centros urbanos brasileiros: enquanto a esposa, como mãe e ‘santa', ocupava o lugar ‘sagrado' da casa, a amante, por sua vez, era a ‘rainha' do motel.
Se, de acordo com Roberto DaMatta, a sociedade no Brasil divide-se dicotomicamente entre a casa e a rua, o motel simboliza, portanto, o espaço da aventura, do perigo e da individualidade, enquanto cabe à casa desempenhar o papel de mantenedor das regras morais vigentes. A pergunta sobre a investigação dos motéis é, hoje: ‘Será que algo mudou, de fato, nesses vinte anos'? Ou será que não se trata somente de uma falsa aparência de liberalismo sexual, com sexo virtual e sites ‘pornô' pela Internet tendo divulgado para muitos apreciadores aquele universo que Michel Foucault denominou de ‘sexo-rei'?
Como afirma este filósofo francês, se é sempre sobre o sexo que estamos falando, mesmo quando procuramos escapar à sua tirania avassaladora, o motel é, de fato, um ‘locus' privilegiado para que se possa entender o funcionamento de uma sociedade de tradição jurídica greco-romana e latina como a nossa, na qual a mulher, a criança e os ‘escravos' (atuais trabalhadores braçais) não têm os mesmos direitos constituídos que o homem adulto, pertencente à elite ou às classes mais abastadas da população."
Lauro Cavalcanti, 2007:
"Ao percorrer os subúrbios, à procura de casas interessantes, impressionou-nos a forte presença da arquitetura extravagante e colorida dos motéis. Pensamos que um exame dessa produção seria um coerente prolongamento de nossa démarche teórica. O que nos parecia uma continuação natural de nosso projeto de mapear a estética da periferia do Rio de Janeiro, revelou-se, contudo, um tema muito mais denso e complexo. Por trás de sua feérica e fantasiosa arquitetura, encontramos nos bastidores desses locais um espaço ascético provido de rígidas regras de funcionamento cuja disciplina permitia a plena realização de fantasias e atos eróticos nos 'palcos' que são os quartos freqüentados pela clientela. O motel só existe por conta dessa dualidade e somente com base em de seu exame é que se toma possível dele se aproximar sociologicamente.
Para dar conta desse universo foi necessário recorrer a um novo arcabouço teórico de autores clássicos da Antropologia Urbana, com destaque para Georg Simmel, Robert Park, Erving Goffman e os brasileiros Roberto da Matta e Gilberto Velho. Preciosa foi a interlocução com profissionais da linha de pesquisa desenvolvida por Gilberto Velho no Museu Nacional/UFRJ que propõe o exame do ambiente urbano por meio de uma perspectiva interacionista, incorporando a dimensão subjetiva ao lançar um olhar sobre o mundo social." [p. 12]
"As dificuldades da pesquisa, assim como os caminhos tomados e a sua metodologia, estão descritos na introdução à primeira edição não cabendo detalhá-los novamente. Interessante, contudo, é tocar, rapidamente, em algumas das repercussões que o livro causou na ocasião do seu lançamento em 1982. Havendo obtido excelente acolhida e boas resenhas na área de ciências sociais e na imprensa em geral, despertou, contudo, forte preconceito e reação em segmentos do mundo arquitetônico. [...]" [p. 13]