Páginas do livro "Arquitetura Kitsch Suburbana e Rural" - à esquerda, a Casa de Ogum, exemplar do "Kitsch Religioso"; e à direita, a Casa do Alvorada, exemplar do "Kitsch com Influência da Arquitetura Moderna".
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A pesquisa que deu origem ao livro foi realizada em 1978, partindo de uma divisão entre áreas de transição (subúrbios) e área rural / praieira, das quais foram selecionadas 13 casas apresentadas em detalhe no livro - os autores produziram fotografias em preto-e-branco e coloridas, croquis de situação e das plantas baixas e entrevistas com os moradores/construtores (uma delas, sobre a Casa Rubnil - Piedade, chegou a ser publicada no livro).
Antes mesmo de sua publicação, o material de pesquisa do livro foi apresentado como trabalho de conclusão de curso de Dinah Guimaraens e Lauro Cavalcanti, orientados, respectivamente, por Lygia Pape e Eduardo Jardim; e publicado parcialmente numa edição da revista Casa & Decoração (n. 50, jul. 1979), onde doze pontos / imagens davam a síntese das reflexões dos autores. Premiado pelo IAB/RJ em 1979, o livro teve uma segunda edição ainda em 1982 (mesmo ano em que publicaram "Arquitetura de Motéis Cariocas"), e conta com uma terceira edição de 2006.
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura Kitsch suburbana e rural. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979.
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. "O gosto pela discussão" x "O gosto não se discute". Casa & Decoração, Rio de Janeiro, ano IX, n. 50, p. 78-79, jul. 1979.
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Introdução à 2ª edição. In: GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura Kitsch suburbana e rural. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. p. 13-14.
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura kitsch suburbana e rural. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
Dinah Guimaraens e Lauro Cavalcanti, 1979:
"O levantamento de uma arquitetura Kitsch vem sendo objeto de nosso interesse desde 1973, ano em que iniciamos os estudos na faculdade de arquitetura. Em contraposição ao ensino acadêmico, cujo enfoque se limitava a abranger a produção arquitetônica oficial - e, mesmo assim, somente em seus exemplos máximos como o edifício do MEC e Brasília - opunha-se nossa vivência anterior enquanto freqüentadores ocasionais dos subúrbios cariocas. Nestes, havíamos detectado um tipo de manifestação arquitetônica bastante rica e original que, não obstante poder lançar novas fontes de discussão sobre o quadro da arquitetura brasileira contemporânea, permanecia desconhecido a nível de um estudo mais sistêmico, por ser encarado como fenômeno cultural desprovido de importância. Acreditamos que a relevância maior deste trabalho residiria justamente em uma tentativa de análise aprofundada dessas manifestações, de modo a poder estabelecer uma base para o estudo no Brasil de construções realizadas sem arquitetos."
"O atual trabalho se insere em um projeto maior, de investigação das várias formas que as manifestações culturais não-oficiais podem apresentar. Consideramos como manifestações oficiais aquelas inerentes a um sistema institucionalizado, ao establishment, relativas às elites, às classes mais favorecidas. Trata-se da arte oficial, academicizante e comportada, agindo de [acordo] com modismos e padrões estabelecidos. Através dela, a classe dominante transmite e propaga sua ideologia, funcionando como porta-voz do sistema.
Já as manifestações não-oficiais estão relacionadas à maioria da massa, constituída por pessoas menos favorecidas, e às classes em ascensão social. Podemos nelas detectar tanto os sentimentos em estado bruto, quanto uma interpretação e retransformação da arte e ideologia oficiais. A emergência desse tipo de manifestação representaria ainda um processo dinâmico de renovação das elites. Acreditamos que a arquitetura Kitsch poderia ser inserida neste último caso, estabelecendo um processo dialético com a arquitetura oficial."
"O Kitsch vai ser encarado por nós, ainda, como um código de estruturação do mundo e da sociedade, na mente dos indivíduos produtores e/ou consumidores desse fenômeno. Partindo de uma analogia entre os sistemas sócio-culturais e os sistemas linguísticos, procuraremos perceber a sociedade como sendo um sistema de comunicação e de significação, valorizando as relações entre os elementos componentes do sistema mais do que os elementos mesmos, e o todo mais do que as partes. Destarte, nossa análise vai procurar encarar o dado Kitsch sem nenhuma visão a priori, mas sim tentando relacioná-lo, sincronicamente, aos fatores de ordem social, econômica ou cultural que se possam apresentar a ele interligados."
"Quando tomamos a cultura popular como objeto de análise, não pretendemos manter nenhum enfoque com pretensões puristas. Na realidade, a massa elabora constantemente seu repertório próprio, através da absorção de uma tecnologia em estágio superior. Algumas vezes, essa absorção se dá somente a nível superficial, como é o caso de aparelhos eletrodomésticos sendo utilizados em barracos de madeira. [...]
Nessa principal indagação seria então a possibilidade de uma resposta antropofágica das massas, sando surgimento a uma terceira realidade cultural, mescla das duas em choque."
"O Kitsch surgiria então como uma reação a normas rígidas que tiveram origem no funcionalismo. Embora, em alguns casos, o Kitsch tenha sido utilizado como fator de edulcoramento e acalmia para a burguesia, em contraposição teríamos o exemplo da contracultura que lançou mão, através do psicodelismo, da linguagem Kitsch para combater os estreitos padrões morais burgueses ocidentais, sendo nisso bastante efetiva e revolucionária."
"O Kitsch vem sendo geralmente encarado através de elementos esparsos, na observação de certos detalhes ornamentais e decorativos - como o pingüim de geladeira, as flores de plástico, ou objetos de acrílico em cores berrantes, a estatuária religiosa popular, o uso do decapé na decoração, os móveis em fórmica etc. - e que quase nunca tem sido analisado na forma mais globalizante e sistemática, encarando a estrutura que o envolve como um todo.
A presente pesquisa da arquitetura Kitsch se propôs a preencher essa lacuna, na medida em que procuramos enfocar tanto a estrutura construtivo-espacial, quanto os elementos decorativos e ornamentais inerentes ao espaço arquitetônico (decoração de fachadas, de frontões, aparecimento de murais, dados ornamentais utilizados no interior das casas etc.)."
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura Kitsch suburbana e rural. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1979, grifos dos autores.
"Uma das indagações que surgiu durante os debates a que comparecemos desde a publicação deste trabalho girava em torno da denominação Kitsch para tal tipo de arquitetura. Gostaríamos de deixar claro que utilizamos tal termo não como uma forma de adjetivização final, mas antes como ponto de partida para relativizar o julgamento de valor realizado pelas camadas eruditas em relação à produção cultural das camadas populares. Partimos de uma teorização existente sobre o Kitsch para tentar demonstrar como a moradia popular, encarada de forma jocosa pelas outras camadas de nossa sociedade, apresentaria uma estruturação coerente em relação a seus aspectos espácio-construtivos, além de contar com toda uma criatividade na concepção de seu ambiente vivencial, impressa pelos seus moradores/construtores. Assim, a abordagem principal de nosso trabalho encontrava-se focalizada na discussão sobre o gosto oficial na arquitetura brasileira, opondo-se a tal gosto aquele outro, decorrente de uma produção popular."
GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura Kitsch suburbana e rural. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, grifos dos autores.
"A arquitetura kitsch brasileira apresenta tanto certo aspecto 'naïf' quanto características da produção 'oficial', sobretudo as da arquitetura moderna (a vanguarda do passado), que agora são parcialmente assimiladas pelo público. Isto é o que podemos chamar de arquitetura pós-popular: a apropriação bem humorada de emblemas clássicos da modernidade. Poderíamos mencionar, por exemplo: os edifícios sobre pilotis 'à moda de Corbu dos anos 1930' apoiando estruturas superdimensionadas; o telhado com calha central (derivado da arquitetura moderna) associado ao frontão, que é um elemento de influência neoclássica; e a utilização sistemática de colunas ‘alvorada' (do palácio do governo brasileiro, criado por Oscar Niemeyer), cuja forma foi empregada sem obedecer, no entanto, as proporções originais."
"A arquitetura brasileira kitsch realizaria um código de duas vias: traduzir o desejo de modernidade e de apreensão dos elementos de uma produção elevada; e funcionar como uma meta-arquitetura, pela crítica aos estereótipos modernos que, uma vez fora do contexto, destacam-se por contraste. Esta arquitetura também nos dá uma boa oportunidade de identificar como a população se apropriou dos elementos de uma arquitetura moderna que tinha, como principal credo ideológico, a ideia de fornecer habitação para as classes menos favorecidas. Isto se dá ao recriar os códigos de uma elite, ao reinterpretá-los e restituí-los a sua forma de matéria bruta. Talvez se deva questionar a possibilidade de um retorno da arquitetura kitsch, que viria na sequência de uma arquitetura erudita, revivida por elementos primitivos, introduzindo seu potencial criativo na produção oficial. Assim como Robert Venturi nos mostrou a possibilidade de se ‘aprender com Las Vegas', seria possível aprender, com o pós-modernismo popular, que o funcional pode dar lugar a um uso poético e alegre da imagem icônica do modernismo."
CAVALCANTI, Lauro. Niemeyer ni pire. L'Architecture d'Aujourd'Hui, Paris, n. 259, p. 48-50, out. 1988. Trad. livre: Leandro Cruz.
"IHU On-Line - Alguns críticos avaliam que a senhora e Lauro Cavalcanti desmistificaram a postura rígida da tradição arquitetônica brasileira. Como isso foi possível?
Dinah Guimaraens - A desmistificação de uma arquitetura oficial foi possível, em nossas análises, ao enfatizarmos aqueles exemplos arquitetônicos vernaculares ou ‘populares' que nunca haviam sido considerados, até então, como legítima expressão cultural brasileira, mas que compõem o repertório de nossa realidade social urbana.
IHU On-Line - Quais os apelos que a senhora encontrou nessa pesquisa?
Dinah Guimaraens - O principal apelo da pesquisa é remeter para a investigação da cultura cotidiana enquanto legítima expressão da ‘alma' brasileira. Neste sentido, o motel revela o modo de ser e de viver do nosso povo, já que não há nada igual a esta instituição para ‘se fazer amor' fora do Brasil, somente havendo algo similar no Japão."
GUIMARAENS, Dinah; IHU (Instituto Humanitas Unisinos). Motel. Espaço da aventura, do perigo, da individualidade. Entrevista especial com Dinah Guimaraens. Instituto Humanitas Unisinos. Entrevistas. 4 mai. 2007. Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/>. Acesso em: 4 out. 2015.
"Vinte e cinco anos se passaram desde a primeira edição de Arquitetura Kitsch suburbana e rural. Feito ainda durante os anos da faculdade, o livro se originou a partir do desejo de criar um antídoto contra o desânimo que o ensino e a realidade profissional projetavam sobre a nossa geração. A arquitetura parecia, no Brasil dos anos 1970, um mundo paralelo de papel vegetal. Era coisa do passado a qualidade da nossa produção nas três décadas precedentes. Desvitalizada e isolada em suas próprias questões oferecia apenas duas alternativas para um jovem: o caminho da especulação imobiliária para os satisfeitos com o status quo e o planejamento urbano para aqueles de ‘esquerda'. O planejador urbano confundia, contudo, prancheta com universo social e representava a faceta mais autoritária e caricata do projeto moderno. As camadas populares eram vistas como um campo que implorava intervenção: os arquitetos demiurgos não reconheciam qualquer qualidade em suas construções. Havia uma profunda rejeição às periferias e à cultura de massas. O popular só interessava enquanto estrutura arcaica e pura. À ditadura política da ‘direita' correspondia um autoritarismo cultural simétrico da ‘esquerda' que buscava padronizar e organizar expressões mais livres das camadas populares. Foi o ápice dos projetos de conjuntos habitacionais e das largas avenidas e viadutos que rasgavam os tecidos urbanos."
"Arquitetura Kitsch representou a incorporação de uma postura tropicalista e contracultural aos livros de arquitetura brasileira. Dois anos foram gastos entre a idéia do projeto, andanças pela periferia carioca e sua forma final. O livro buscava trazer para o universo da teoria arquitetônica noções de inter e transdiciplinaridade. Percebíamos que as estruturas coloridas, descartadas como de mau gosto pela maioria, apresentavam soluções inovadoras e significados simbólicos interessantes de serem contrapostos à tímida arquitetura vigente que só contemplava o aspecto funcional. Interessava-nos, também, discutir a própria noção de gosto. Feita uma revisão teórica pareceu-nos muito mais razoável lançar mão de elementos de semiótica e teoria da informação no sentido de um exame de repertório e tradução de códigos de diferentes estratos culturais. Ainda que evitando uma postura apologética, parecia-nos que essas casas expressavam, em certa medida, uma vanguarda de choque da cultura popular. E provocavam uma interessante reflexão sobre o papel da cultura de massas como território de fronteira entre arte erudita e popular. O livro, para nossa surpresa, esgotou duas edições e ganhou o prêmio do Instituto dos Arquitetos. Uma das maiores virtudes da publicação foi a de não aceitar o isolamento que os historiadores arquitetônicos se impunham, ampliando o quadro referencial de discussão em arquitetura. Foi, nesse sentido, central o diálogo com as idéias e práticas de Hélio Oiticica, Décio Pignatari, irmãos Campos e Lygia Pape."
CAVALCANTI, Lauro. Introdução à terceira edição. In: GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro. Arquitetura kitsch suburbana e rural. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. p. 9-12, grifos do autor.
"A exposição Arquitetura sem arquitetos (1964), organizada por Rudofsky no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, influenciou decisivamente uma visão estética da arquitetura popular [...]. Embora não possa ser visto como uma referência conceitual e metodológica importante, Rudofsky chama a atenção para a beleza dessa arquitetura, equiparando-a e colocando-a, pela primeira vez de modo explícito, lado a lado com obras excepcionais da natureza.
Na bibliografia produzida no Brasil não se verificou, até o momento, uma exploração abundante ou constante das relações entre arquitetura, estética e arte popular, embora obras como Arquitetura kitsch suburbana e rural (1979), de Dinah Guimaraens e Lauro Cavalcanti, e Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica (2003), de Paola Berenstein Jacques, tragam importantes reflexões sobre arte, estética e arquitetura das favelas e bairros populares, com reflexões conceituais e metodológicas importantes para o campo, inclusive no que toca à apropriação e à produção popular de assentamentos urbanos."
SANT'ANNA, Márcia. Arquitetura popular: espaços e saberes. Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 6, n. 2, p. 28-39, 2013, grifos da autora. Disponível em <www.portalseer.ufba.br>. Acesso em: 4 out. 2015.