1980
Brasil, Rio de Janeiro
PublicaçãoIdiomas disponíveis
Português
Marcadores
Favelas, Participação, Planejamento Urbano
Colaborador
Ícaro Vilaça
Citado por: 1
"Quando a Rua vira Casa é uma análise interdisciplinar da apropriação de espaços urbanos. Sua proposta: comparar um centro de bairro tradicional com uma área nova, inteiramente planejada de acordo com parâmetros e concepções modernas, no Rio de Janeiro. Com essa finalidade foram escolhidos, respectivamente, o Catumbi e a Selva de Pedra. Catumbi é um bairro que se desenvolveu, a partir do século XIX, recebendo imigrantes portugueses, italianos e ciganos. Considerado obsoleto e de qualidades urbanísticas indesejáveis, teve a sua erradicação proposta por um plano de renovação urbana em 1964. Na ocasião da pesquisa (1979), sofria um novo assalto por parte dos órgãos estatais encarregados da implantação deste plano. Muito próximo da ACN, o bairro se valorizou ainda mais com a abertura de um túnel que o deixou a dois passos da área mais rica do Rio, o que fez se voltarem para ele os interesses do capital imobiliário. A Selva de Pedra surgiu, no começo da década de 70, na melhor área da cidade e ocupa o lugar de uma favela, vitimada pela política de remoções do Governo estadual. Representa, além disso, o fruto do planejamento racionalista de meios urbanos modernos. Por esse motivo se prestava perfeitamente à comparação com o Catumbi. A metodologia do trabalho procura aliar o conhecimento arquitetônico e urbanístico à abordagem peculiar da antropologia social. Seu problema: estudar, nos casos escolhidos – Catumbi e Selva de Pedra – o caráter próprio e diferencial do uso de espaços coletivos , quando voltado para o lazer. A partir dessa visão comparativa, são avaliados os pressupostos e as proposições das políticas de inspiração racionalista, no planejamento urbano." (FERREIRA DOS SANTOS; VOGEL, 1980)
O trabalho escrito é complementado por um filme homônimo, cujo roteiro é de autoria de Carlos Nelson F. dos Santos e Arno Vogel e que foi dirigido por Maria Tereza Porciúncula de Moraes.
FERREIRA DOS SANTOS, Carlos Nelson e VOGEL, Arno. Quando a rua vira casa: A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro. 3ª edição. São Paulo: Projeto, 1985. P. 149
Carlos Nelson F. dos Santos e Arno Vogel, 1980:
"A oposição Casa X Rua vem acompanhada da idéia de gradação, tal como aplicado ao conjunto dos espaços que designamos pela categoria inclusiva de casa (DA MATTA, 1979). A Rua como domínio oposto ao da casa, tenderia a identificar-se com o público, o formal, o visível e o masculino. A casa, como sua contrapartida, estaria vinculada, em princípio, ao privado, ao informal, ao invisível e ao feminino. Estes, no entanto, são apenas pólos de um eixo para a compreensão do universo social. Os dados da percepção distintiva do masculino/feminino, do visível/invisível, do público/privado, do formal/informal, bem como do dentro/fora, são codificados diversamente, nas diferentes culturas. São significantes privilegiados cuja combinação e significados variam contextualmente. [...]
A rua pode ser invocada como lugar de passagem, como caminho que leva ao trabalho, ao lazer, ao culto, mas ela mesma dá lugar a todas essas atividades. Uma rua está, em geral, associada ao que se chama de passeio, quer dizer às calçadas. Estas acompanham o correr de casas e o traçado da via, definindo fisicamente um espaço intermediário que é o espaço das pessoas na rua.
As calçadas pertencem às casas, o que não significa que sejam parte das mesmas enquanto propriedade. O seu caráter público contrasta, por vezes, com as formas pelas quais são circunstancialmente utilizadas. As diversas maneiras de ocupação destas áreas vivas do espaço urbano criam uma ambiência que os moradores associam ao modo de vida tradicional do Catumbi. Referem-se muito a um tempo em que as cadeiras na calçada eram ‘a marca registrada’ da vida do bairro. O hábito, característico dos momentos especiais, marcado pela suspensão do cotidiano (fins de tarde, tardes de sábado, domingos ou feriados), é considerado exemplar do estilo de lazer do Catumbi. No passado, dizem, todos tinham esse costume que hoje parece estar em extinção. [...]
Todo o processo de apropriação dos espaços num centro de bairro tradicional como é o Catumbi é condicionado pela maneira segundo a qual as diferentes funções primárias da vida urbana se interligam. A característica está na multiplicidade das funções que se relacionam dentro de uma mesma área urbana, de modo que nem sempre possamos reconhecer onde começam e onde terminam os conjuntos articulados.
O princípio da diversidade, como ressalta a etnografia, dá margem a muitas conjunções de espaço e atividade. Elas não se excluem, entretanto. Os conjuntos que formam têm fronteiras fluídas. Podem recobrir-se parcial ou totalmente. Quer dizer, não há uma coisa apropriada para cada espaço, nem um espaço apropriado para cada coisa. A mistura não é um acidente. É o estilo da vida urbana nessa área. Os arranjos que produz estão limitados a um determinado espectro de possibilidades, o que significa que existem e são admissíveis e lógicos vários tipos de ordem.
A diversidade equivale à negação de uma única e determinada forma de classificar. A tradição intelectual racionalista define classe como sendo o conjunto cujos elementos partilham um traço comum. Nesse tipo de sistema, cada classe se integra, em virtude do mesmo princípio, a um conjunto de nível superior no qual passa a estar inteiramente contida. Duas classes quaisquer se distinguem, quando são de uma mesma ordem, segundo um critério binário, de acordo com o qual há uma que é marcada (possui o traço) e a outra que não é marcada (não possui o traço). [...]
O resultado desse princípio classificatório é o seu caráter linear, a exigência de fronteiras nítidas e a sua necessária hierarquização. [...] Na medida em que os usos variam, põem em funcionamento o circuito de relações que constituem a vida pública nos espaços de uso comum. Esta, por sua vez, alimenta as redes de crédito e confiança. Põe em contato as pessoas, incorpora estranhos, garantindo assim a segurança que resulta também dos muitos olhos e dos muitos responsáveis pela rua.
O lazer, atividade fundamental para a socialização, tem na rua um dos seus possíveis domínios e, certamente, o não menos importante, em virtude da variedade de experiências às quais abre caminho. O caráter sintético da rua torna a intricada gama de possibilidades inteligível, numa dimensão prática essencial. [...]
[Na Selva de Pedra] há uma nítida preocupação com a separação das funções e dos espaços, de maneira que a cada função corresponda apenas o uso que lhe é ‘adequado’. Isto traduz a preocupação de separar e ordenar hierarquicamente. O objetivo são espaços unívocos, homogêneos e transparentes. A ambigüidade é o que precisa ser evitado. O conflito das interpretações reduzido a zero, se possível. A pureza funcional dos espaços, ou é uma ilusão que se persegue, ou é uma realidade efêmera, onde a mistura tende a ressuscitar perigosamente. Quando este é o caso, as práticas e os usos ‘inadequados’ estão em conexão com uma relação problemática que os usuários estabelecem com o espaço. Estamos diante de um sistema de classificação monotético, preocupado com definir conjuntos e combinações em número muito pequeno e com fronteiras bem marcadas. Para não haver confusão. [...]
A ausência da diversidade e a busca da transparência são eles mesmos elementos de um sistema de valores. Formam um paradigma da vida urbana que enfatiza o indivíduo, sua privacidade e sua autonomia com relação aos outros. Mas, paradoxalmente, esta última tende a transformar-se numa heteronomia, pois as funções de segurança, mediação e controle são particularizadas institucionalmente. Daí os poucos olhos, a convicção inexistente, a responsabilidade coletiva abdicada, a escassez de personalidades públicas vocacionais e instâncias mediadoras, a falta de vida pública.
A desconfiança e o voyerismo sugerem que a curiosidade pelo outro, temperada pelo medo de ser invadido, resultam nesta observação à distância que muitas vezes, chega a se transformar numa cumplicidade. Uma espécie de violação que todos, por detrás do anonimato, praticam com maior ou menor discrição. Estes são os custos de uma ética de interdição do outro.
Cortinas, obstáculos tais como jardineiras, grades, síndicos, porteiros, guardas, vigias e zeladores são funções que se desenvolvem no rastro da impessoalidade e da segregação. O problema do controle do espaço é crucial nos sistemas redutores da ambigüidade. A recusa da diversidade em favor da pureza funcional exige formas institucionais capazes de exercer profissionalmente as tarefas que antes, ou em outro meio urbano, eram de responsabilidade de todos. Os próprios ‘cargos’ são funcionalmente especializados. [...]
O fracasso da ‘vida comunitária’ traduz a dificuldade de se estabelecer uma coisa pública partindo dos pressupostos da privacidade, da individualização, da preeminência do regulamento (fruto da vida contemplativa do legislador) e da necessidade de uma ordem única, binária e transparente."
FERREIRA DOS SANTOS, Carlos Nelson e VOGEL, Arno. Quando a rua vira casa: A apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro. 3ª edição. São Paulo: Projeto, 1985.
Silvana Olivieri, 2007:
"Foi num Catumbi devastado e tenso – porém ainda vivo - que Carlos Nelson, Vogel e Mello iniciaram a pesquisa ‘Espaço social e lazer, estudo antropológico e arquitetônico do bairro do Catumbi’, em 1979. Ainda sob ameaça de novas demolições pelo governo, pairava entre os moradores ‘um clima de apreensão e desesperança’, como se esperassem um ‘golpe de misericórdia’ acabando com o que havia restado do bairro. [...]
A pesquisa tinha por objetivo mais amplo questionar a validade de grandes postulados da teoria urbanística, tidos por ‘científicos’, que levaram à depreciação e, conseqüentemente, à destruição do Catumbi, condenado como anacrônico, ineficiente e disfuncional, através da observação do cotidiano do bairro, mais especificamente, das formas e processos de apropriação de espaços (tanto públicos como privados) de uso coletivo para o lazer ali existentes, comparando ao que acontecia num caso exemplar daquilo que, num extremo oposto, era apresentado por técnicos e governantes como lógico, desejável e modelar.
Assim, como contraponto ao Catumbi, foi escolhida a Selva de Pedra, um conjunto situado na Zona Sul carioca, entre o Leblon e a Lagoa Rodrigo de Freitas, formado por quarenta torres residenciais dispostas em torno de uma grande praça central, destinada ao lazer e à recreação de seus moradores, todos membros da classe média – basicamente, famílias de professores, funcionários de empresas estatais e militares. A Selva de Pedra fora concebida pelo governo estadual, financiada pelo BNH e construída pelo capital privado no início da década de 1970, bem no lugar onde ficava a favela da Praia do Pinto. Tratava-se, portanto, de um ‘plano de renovação urbana plenamente realizado’.
Ao Catumbi correspondia um espaço urbano mais espontâneo, produzido lenta e gradativamente pela prática compartilhada e dialógica da negociação cotidiana. Caracterizava-se por um traçado irregular, quadras pequenas, casario de arquitetura modesta e vernacular, tudo na escala do pedestre, mas com grande diversidade, variabilidade e mistura de usos e atividades. A Selva de Pedra, ao contrário, planejada seguindo à risca os parâmetros e concepções funcionalistas, era um ambiente onde predominava a uniformidade, a impessoalidade, a rigidez, o controle e a separação.
Nos dois casos (mas com bem menos intensidade na Selva de Pedra), foi utilizado como método a etnografia e sua técnica de observação participante, praticada ao longo de caminhadas nas quais se levantava o máximo de informação e se vasculhavam os mínimosdetalhes dos espaços percorridos. Muitas dessas incansáveis caminhadas realizadas no Catumbi foram feitas na companhia dos antigos moradores que, ao recriarem ambientes, personagens, acontecimentos, relações, até mesmo cheiros e gostos que haviam desaparecido com as demolições, conduziam os pesquisadores por uma “geografia fantástica” do bairro [...]
No decorrer da pesquisa – que durou cerca de oito meses, sendo concluída em janeiro de 1980 -, foram mapeadas e apreendidas singularidades, hábitos, tradições, locais e situações de encontro e convívio, de jogos e brincadeiras, e também de conflitos entre os habitantes, observados em suas práticas materiais e simbólicas. Procurou-se mostrar, ainda, não apenas como estes usam seus espaços, mas como também o vêem, dando oportunidade ao
‘outro lado’ de revelar as suas razões e ordens (FERREIRA DOS SANTOS e VOGEL,1981:7;9). Deste modo, a vivência cotidiana de um microcosmo dentro de uma metrópole fornecia os subsídios, os testemunhos e as provas para se contestar as idealizações abstratas e utópicas sobre o urbano, questionando a natureza do próprio saber-fazer urbanístico. [...]
Para captar a desejada ‘fala da realidade’, foram combinados procedimentos de pesquisa em etnografia e em urbanismo. Assim, nos trabalhos de campo, foram feitas entrevistas com moradores e usuários dos espaços, mapas, fotografias (e, a partir delas, desenhos), além de algo até aquele momento pouco comum em se tratando de um estudo de espaços urbanos no Brasil, seja no campo do urbanismo, da sociologia ou antropologia urbanas: um registro audiovisual, feito em película de 16 mm. [...]
Esse processo de filmagem e de montagem [...] resultou no documentário ‘Quando a rua vira casa’, um curtametragem de aproximadamente 21 minutos, exibido pela 1ª vez no IBAM. Com o passar do tempo, e em particular após a morte de Carlos Nelson, esse filme acabou sendo praticamente esquecido, ao contrário do livro, que cada vez mais teve sua importância reconhecida no meio acadêmico e profissional. "
LEGENDA MAPA DE REFERÊNCIAS DO CATUMBI [ver imagem ao lado]
- Túnel Sta Bárbara
- Garotos soltando pipa
- Brincadeira na árvore
- Escadaria para Santa. Tereza
- Ambulantes na passagem subterrânea
- Antiga chaminé
- Futebol no viaduto
- Baloeiros
- Reunião do pessoal do Bafo de Onça
- Túnel para a Lapa
- Encontros
- Formas de apropriação do estacionamento
- “Campo de pelada” do pessoal da Frei Caneca
- Instalações da Light
- Presídio
- Travestis na porta de casa ocupada
- Meninos invasores jogando bola
- Bar-Armazém Brasil
- Conversa na porta de D.Leonor
- Òtica do Sílvio
- Bar Mulambo
- Oficina Rio-Neiva
- Oficina do Santos
- Operários das oficinas jogam bola
- Bar do Garrincha
- Bicheiros
- Bar do Amaral
- Igreja da Salete
- Lava a jato
- Feira da rua Emília Guimarães
- Bar e Armazém São José
- Cadeiras na Calçada
- Quitanda em frente
- Jogo de bola
- Jogo de sueca
- Chácara do Chichorro
- Garagem Presidente
- Jogo de Raquete
- Skate na rua
- Venda “ambulante” na subida do morro
- Jogo de bola no campo da Mineira
- Capela do Cemitério
- Garotos soltando pipa
- Porta do Cemitério
- Esquina das ruas do Chichorro e do Catumbi
- Jogo de bola em frente da oficina
- Ótica do Ítalo
- Conjunto da Cooperativa
- Conjunto Ferro de Engomar
- Casa da festa de Cosme e Damião